9 de julho de 2025
NotíciasOlfato em FocoDo útero à taça: como o olfato guia nossos hábitos alimentares e até transforma a experiência de um vinho
A maior parte de nós só percebe o quanto o olfato importa quando está gripado e a comida “perde a graça”. Mas pesquisas sugerem que o olfato começa a influenciar nossas preferências alimentares muito antes de darmos a primeira mordida, ainda durante a gestação.
Estudos indicam que compostos aromáticos presentes nos alimentos consumidos pela mãe podem atravessar o líquido amniótico, expondo o feto a esses cheiros.
Após o nascimento, alguns bebês demonstram maior aceitação por sabores e aromas familiares, construindo desde cedo um repertório sensorial ligado ao que a mãe consumiu durante a gravidez.
Essa influência precoce mostra que o olfato não é apenas um sentido que “perfuma” a experiência alimentar, mas sim parte ativa de como começamos a formar preferências, muito antes mesmo de provarmos algo pela boca.
Cheiros que despertam vontade e também saciedade
No dia a dia, o olfato atua como uma espécie de termômetro de apetite. Sentir o aroma de um alimento pode estimular a liberação de hormônios como grelina, que aumenta a fome, enquanto outros hormônios, como leptina e insulina, ajudam a sinalizar saciedade ao cérebro.
Além disso, esses estímulos ativam o sistema de recompensa, aumentando a liberação de dopamina, neurotransmissor que intensifica a sensação de prazer e a motivação para comer. É esse circuito que faz com que certos cheiros despertem mais vontade de comer – não só por lembrança ou emoção, mas também por um ajuste químico real no organismo.
Curiosamente, essa mesma via também pode ajudar a moderar o apetite: aromas muito intensos ou pouco familiares podem reduzir a ingestão, mostrando que o nariz não serve apenas para nos atrair até a comida, mas também para regular quando parar.
O mesmo nariz, dois caminhos e funções diferentes
Embora usemos os mesmos receptores olfativos, existem duas rotas pelas quais os cheiros chegam até eles:
- Via ortonasal: quando inspiramos aromas vindos do ambiente, como ao cheirar um prato ou uma taça de vinho.
- Via retronasal: durante a mastigação e deglutição, quando compostos aromáticos liberados na boca sobem pela faringe até os receptores olfativos.
A ciência mostra que essas rotas são processadas de forma diferente no cérebro. A percepção retronasal, essencial para sentirmos o “sabor” completo dos alimentos, depende do córtex gustativo – área que integra sinais do paladar e dos aromas, formando a sensação complexa de sabor.
Já a percepção ortonasal ocorre de forma mais independente, usando os circuitos olfatórios tradicionais e agindo principalmente na antecipação e no reconhecimento de cheiros.
É por isso que, quando estamos congestionados, a comida parece sem gosto: a via retronasal fica bloqueada, e o cérebro não recebe a combinação de informações que cria o sabor.
Apreciar um vinho é, acima de tudo, treinar o nariz
O universo dos vinhos talvez seja o exemplo mais evidente de como o olfato transforma a experiência alimentar. Degustar não é apenas notar se um vinho é doce ou ácido, mas identificar nuances – notas frutadas, florais, minerais – que vêm de centenas de compostos aromáticos.
Mais interessante ainda é que essa capacidade pode ser treinada. A memória olfativa se expande conforme prestamos atenção aos aromas do dia a dia, tornando nosso paladar mais sensível e apurado. É por isso que quem começa a estudar vinhos descobre um mundo novo que sempre esteve ali, mas passava despercebido.
Essa prática não apenas aumenta o prazer ao degustar, mas também enriquece nossa relação com os alimentos em geral. Desenvolver o olfato é aprender a notar detalhes que tornam a experiência alimentar mais consciente, completa e até mais saudável.
Mais do que “sentir cheiros”
No fim, o olfato vai muito além de trazer lembranças ou gerar prazer imediato. Ele participa da nossa história desde muito cedo, influencia preferências que carregamos pela vida toda e transforma a maneira como experimentamos o mundo, seja ao escolher o que colocar no prato, seja ao descobrir as camadas escondidas de um bom vinho.
No Centro de Pesquisa do Olfato do Grupo Boticário, estudamos justamente essas conexões sutis e potentes entre cheiros, bem-estar e comportamento. Porque entender melhor como o olfato atua é, no fundo, entender melhor a nós mesmos.
Referências:
Ustun-Elayan B, Blissett J, Covey J, Schaal B, Reissland N. Flavor learning and memory in utero as assessed through the changing pattern of olfactory responses from fetal to neonatal life. Appetite. 2025 Apr 1;208:107891. doi: 10.1016/j.appet.2025.107891. Epub 2025 Jan 30. PMID: 39892645.
Blankenship ML, Grigorova M, Katz DB, Maier JX. Retronasal Odor Perception Requires Taste Cortex, but Orthonasal Does Not. Curr Biol. 2019 Jan 7;29(1):62-69.e3. doi: 10.1016/j.cub.2018.11.011. Epub 2018 Dec 20. PMID: 30581018; PMCID: PMC6604050.
Melis M, Tomassini Barbarossa I, Sollai G. The Implications of Taste and Olfaction in Nutrition and Health. Nutrients. 2023 Jul 31;15(15):3412. doi: 10.3390/nu15153412. PMID: 37571348; PMCID: PMC10421496.