29 de setembro de 2025
BlogNotíciasNeuroplasticidade do Olfato: como o cérebro se adapta e aprende com os cheiros
O olfato é um dos nossos sentidos mais fundamentais, com um poder surpreendente de influenciar nossas emoções e memórias. O que a ciência tem revelado é que esse sentido não é estático. A capacidade do cérebro de se reorganizar em resposta a novas experiências – a chamada neuroplasticidade – é um processo dinâmico que afeta o olfato de maneiras profundas, desde a recuperação de perdas sensoriais até a criação de habilidades de elite.
Renovação constante: neurogênese e adaptação
O sistema olfativo é único no corpo por ser um dos poucos lugares onde a neurogênese, ou a formação de novos neurônios, ocorre ao longo de toda a vida. Essa capacidade de renovação acontece em duas áreas principais: o epitélio olfativo, na cavidade nasal, e o bulbo olfativo, a primeira central de processamento de cheiros no cérebro.
Durante anos, os cientistas acreditaram que essa renovação servia apenas para substituir neurônios que morriam por desgaste natural ou danos ambientais. No entanto, estudos recentes desafiam essa visão.
Pesquisas em camundongos mostraram que a exposição a odores pode, na verdade, acelerar a produção de neurônios que respondem especificamente a esses cheiros, transformando a neurogênese em um mecanismo de adaptação sofisticado. Isso significa que o nosso cérebro não apenas repõe células, mas se otimiza ativamente para o ambiente em que vive.
A anosmia específica e o poder do treinamento
A anosmia específica, a incapacidade de sentir um odor em particular, é um fenômeno comum e não patológico. O estudo sobre a anosmia específica para a androstenona, um esteróide presente em secreções humanas, é um exemplo notável dessa plasticidade. A pesquisa mostrou que o treinamento olfativo, que consiste na exposição repetida e diária a odores, pode “ensinar” o cérebro a detectar um cheiro que antes era indetectável.
Após dois meses de treinamento, os participantes anósmicos adquiriram a capacidade de perceber a androstenona. No entanto, o estudo revelou que os efeitos foram temporários: em um acompanhamento 19 meses depois, a sensibilidade dos participantes voltou a níveis próximos aos do início, indicando que a habilidade foi perdida após a interrupção do treinamento. Essa reversibilidade sugere que, em pessoas com olfato saudável, o sistema se ajusta a novos estímulos, mas a manutenção dessa nova capacidade exige exposição contínua.
O estudo também mostrou que pessoas com anosmia específica tinham níveis de bem-estar e satisfação com a vida semelhantes aos daqueles sem a condição. No entanto, as diferenças na importância atribuída ao olfato e em como os cheiros influenciam o comportamento diário sugerem que a anosmia específica pode afetar o funcionamento social, já que a percepção de odores corporais de outras pessoas pode estar alterada.
Aprimoramento olfativo: como sommeliers e perfumistas moldam o cérebro
Se a exposição a novos cheiros pode causar mudanças temporárias, o que acontece quando essa exposição é a base de uma profissão? Estudos mostram que o treinamento intenso de especialistas como sommeliers e perfumistas pode causar alterações estruturais profundas e duradouras no cérebro.
Um estudo longitudinal acompanhou estudantes de sommelier por 18 meses e comparou-os a um grupo de controle. Os pesquisadores descobriram que, durante o período de treinamento, o volume do bulbo olfativo dos estudantes aumentou significativamente, enquanto o grupo de controle não apresentou mudanças. Em pessoas saudáveis, um bulbo olfativo maior está associado a uma melhor capacidade de sentir cheiros, seja na identificação, na discriminação ou no limiar de detecção.
Além disso, a ressonância magnética revelou que o treinamento mudou a espessura de áreas cerebrais relacionadas ao olfato. Houve um aumento na espessura de uma área chamada córtex entorrinal direito, uma região crucial para a percepção e a memória de odores. Outros estudos com perfumistas confirmaram essa plasticidade, mostrando um aumento no volume de massa cinzenta em áreas-chave do cérebro para o processamento de odores.
Nos profissionais mais experientes, o volume da massa cinzenta se correlacionou positivamente com o tempo de prática, sugerindo que o treinamento a longo prazo pode neutralizar o declínio de volume cerebral relacionado à idade.
O olfato como alerta para doenças neurodegenerativas
A neuroplasticidade olfativa não é importante apenas para o aprendizado, mas também para a saúde do cérebro. A perda do olfato, ou anosmia, é um sintoma precoce e comum em doenças neurodegenerativas como o Parkinson e o Alzheimer, podendo surgir anos antes de outros sinais.
Um estudo longitudinal com pacientes de Parkinson em estágio inicial demonstrou que aqueles com anosmia apresentavam um declínio mais acentuado no volume e na espessura de áreas cerebrais ligadas à cognição e memória. A combinação de anosmia com um distúrbio do sono intensificou ainda mais a atrofia em várias regiões cerebrais, como o precuneus, que está ligado a funções cognitivas complexas.
A capacidade de detectar odores pode, portanto, servir como um sinal de alerta para o declínio cognitivo. Uma pesquisa populacional de 12 anos com adultos mais velhos revelou que a disfunção olfativa isolada estava associada a um risco de demência 2,13 vezes maior. Quando a disfunção olfativa se unia a um comprometimento cognitivo, esse risco aumentava para 5,8 vezes, e a demência se manifestava em uma média de três anos antes. Esses achados sugerem que o olfato pode ser uma ferramenta de triagem acessível e eficaz para identificar indivíduos com alto risco de progressão para demência.
O compromisso do Centro de Pesquisa do Olfato com a saúde do cérebro
No Centro de Pesquisa do Olfato do Grupo Boticário, acreditamos que compreender como o olfato se conecta à neurociência é essencial para ampliar o conhecimento sobre emoções, memória, saúde e bem-estar. Por isso, apoiamos iniciativas que promovem a conscientização e o diálogo científico, como o evento anual do Instituto Supera – “Despertando a Sociedade para a Saúde do Cérebro”.
Ao reunir ciência, inovação e sociedade, reafirmamos nosso propósito de disseminar informações que inspiram novas descobertas e contribuem para um futuro em que o cuidado com o cérebro e com os sentidos seja cada vez mais valorizado.
Referências
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