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19 de agosto de 2025

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Olfato e Gravidez: um sentido em transformação

A gravidez é um dos períodos mais transformadores na vida de uma mulher, marcada por uma sinfonia hormonal que afeta o corpo de maneiras profundas e, muitas vezes, inesperadas. 

Um dos fenômenos mais intrigantes e amplamente relatados é a mudança na percepção olfativa. A maioria das gestantes jura que seu olfato fica mais apurado, uma condição conhecida como hiperosmia. 

No entanto, a ciência revela uma história mais complexa, onde a experiência subjetiva nem sempre se alinha com os dados objetivos.

O paradoxo da percepção: subjetivo vs. objetivo

A experiência subjetiva de um olfato aguçado é notavelmente comum, com relatos de até 85% das grávidas. Essa sensibilidade aumentada é mais notável no primeiro trimestre e frequentemente está ligada à aversão a certos cheiros e ao aumento das náuseas, os famosos “enjoos matinais”. Odores de gordura, temperos fortes, alimentos estragados ou fumaça podem se tornar insuportáveis, funcionando como verdadeiros gatilhos para o mal-estar.

No entanto, quando os cientistas usam testes olfativos, os resultados são, no mínimo, surpreendentes. Esses testes padronizados, que medem a capacidade de detectar, identificar e discriminar odores, muitas vezes falham em confirmar a hiperosmia. Em alguns casos, a acuidade olfativa pode até diminuir, especialmente no terceiro trimestre, criando um paradoxo entre o que a mulher sente e o que os testes medem.

Por que essa discrepância acontece? A ciência explica

A explicação para essa desconexão não é simples, e reside em uma combinação de fatores:

1. A ação direta dos hormônios: uma modulação fina

A gravidez é um estado de elevação drástica e sustentada de hormônios como o estrogênio e a progesterona. As células do epitélio olfativo, onde os cheiros são detectados, e os neurônios olfativos expressam receptores para esses hormônios. Essa presença de receptores sugere que os hormônios podem atuar diretamente no sistema olfativo.

Curiosamente, estudos em modelos animais mostram que, em altas concentrações, a progesterona pode diminuir a resposta neuronal a certos odores, funcionando como um freio. Isso poderia explicar a hiposmia objetiva, onde a ação inibitória da progesterona sobre os neurônios olfativos anularia qualquer efeito de aguçamento do olfato que o estrogênio pudesse causar.

2. O impacto fisiológico Indireto: a rinite da gravidez

Além da modulação direta, os hormônios da gestação causam uma série de mudanças físicas na cavidade nasal. O aumento do estrogênio e da progesterona leva à hiperreatividade da mucosa nasal, resultando em inchaço e aumento de secreção, uma condição conhecida como rinite gravídica. 

Essa obstrução física reduz a quantidade de ar que chega aos receptores olfativos, dificultando a percepção de odores e contribuindo para a hiposmia objetiva. É um exemplo claro de como uma mudança fisiológica sistêmica pode impactar diretamente um sentido.

3. A reestruturação cognitiva e neural: uma repriorização cerebral

A evidência mais forte para a hiperosmia subjetiva reside nas mudanças de nível superior no cérebro. A ausência de uma melhora objetiva na capacidade olfativa, combinada com a experiência intensa e emocional dos odores, aponta para uma reestruturação cognitiva.

O cérebro da gestante parece dar mais ênfase na forma como processa a informação olfativa. Ele pode estar:

  • Aumentando a atenção aos odores: o cérebro se torna mais vigilante em relação aos cheiros, tornando-os mais proeminentes na consciência, mesmo que a capacidade de detectá-los em concentrações mínimas não tenha mudado.
  • Alterando o processamento emocional: odores que antes eram neutros se tornam desagradáveis. Essa mudança hedônica é crucial, pois pode ser uma adaptação evolutiva. Ao associar cheiros de alimentos potencialmente estragados ou substâncias nocivas a sentimentos de aversão e náusea, o corpo protege a mãe e o feto.
  • Passando por plasticidade neural: estudos em animais mostram que a gravidez causa a formação temporária de novos neurônios no bulbo olfativo, que podem otimizar o processamento de odores biologicamente relevantes, como os do futuro bebê. Essa neurogênese adaptativa sugere uma reorganização do cérebro para as necessidades da maternidade.

O sentido da proteção

A percepção olfativa na gravidez é um fenômeno complexo, impulsionado por uma interação dinâmica de fatores hormonais, fisiológicos e cognitivos. A “hiperosmia” não é uma super capacidade de detecção, mas sim uma recalibração adaptativa do sistema olfativo. 

Esse ajuste direciona a atenção e as respostas emocionais para odores com relevância biológica, atuando como um mecanismo de proteção crucial para a saúde da mãe e do bebê em desenvolvimento.

O fascinante paradoxo entre a experiência subjetiva e os dados objetivos nos mostra que o olfato vai muito além da simples detecção. Ele é uma expressão sensorial profunda da nossa biologia em constante diálogo com o nosso cérebro, moldando nossas ações para garantir a sobrevivência e a prosperidade.

Referências Bibliográficas:

Sabiniewicz A, Pieniak M, Hummel T. Pregnant women exhibit decreased trigeminal sensitivity. Brain Behav. 2024 Jul;14(7):e3597. doi: 10.1002/brb3.3597. PMID: 38956811; PMCID: PMC11219288.

Albaugh SL, Wu LL, Zhang D, Diaz A, Werner DA, Pinto JM, Cameron EL. Olfaction in pregnancy: systematic review and meta-analysis. Chem Senses. 2022 Jan 1;47:bjac035. doi: 10.1093/chemse/bjac035. PMID: 36469055; PMCID: PMC9780746.