9 de outubro de 2025
BlogNotíciasOlfato em FocoDia das Crianças e o arquiteto invisível: o guia sobre o olfato no desenvolvimento infantil
Com o Dia das Crianças se aproximando, pensamos em presentes e brincadeiras. Mas e se um dos maiores presentes que podemos dar ao desenvolvimento infantil for completamente invisível? Falamos do sentido do olfato na infância.
Ele é o arquiteto silencioso que constrói as fundações do cérebro para o afeto, a memória e até mesmo a alimentação. Longe de ser apenas um complemento, ele é um sistema biologicamente preparado para guiar os primeiros e mais decisivos passos da vida, moldando quem nos tornamos de maneiras que só agora começamos a entender.
A primeira escola de cheiros: continuidade e programação no útero
A jornada do desenvolvimento do olfato infantil começa surpreendentemente cedo. Ainda no útero, o sistema olfativo do feto já está formado e funcional. Ao engolir o líquido amniótico, o bebê é imerso nos aromas da alimentação da mãe.
Este ambiente funciona como uma ponte olfativa, criando uma continuidade entre o mundo pré-natal e o pós-natal. O cheiro familiar do líquido amniótico no corpo da mãe após o parto é um dos primeiros sinais que guia o bebê em direção ao seio.
Mais do que apenas criar preferências, essa exposição precoce funciona como uma “programação metabólica”. Os aromas da dieta materna “treinam” o sistema olfativo do feto, podendo influenciar a aceitação de alimentos saudáveis no futuro.
O desenvolvimento do olfato segue uma estratégia inteligente de “função primeiro, refinamento depois”. Ao nascer, as partes do sistema necessárias para tarefas urgentes – como detectar o cheiro da mãe – já estão maduras. Enquanto isso, as áreas cerebrais responsáveis por análises mais complexas continuam a se refinar ao longo da infância.
O cheiro que conecta: a importância do olfato para bebês e o vínculo afetivo
Para um recém-nascido, o cheiro da mãe é um farol de segurança, essencial para o vínculo mãe-bebê. Essa conexão é profundamente neurológica. Estudos de imagem cerebral mostram que o odor de um bebê ativa os circuitos de recompensa no cérebro de uma mulher.
Uma informação fascinante, no entanto, é que a conectividade funcional dentro dessas redes de recompensa é mais acentuada em mães do que em mulheres que nunca tiveram filhos. É como se a experiência da maternidade aumentasse o “volume” dessa conexão neural.
Além disso, o olfato funciona como um andaime para outros sentidos. Estudos que medem a atividade cerebral de bebês (EEG) mostram que a presença do cheiro da mãe ajuda o cérebro infantil a processar estímulos visuais, como rostos. O cheiro cria um ambiente seguro que encoraja o cérebro a explorar e aprender sobre o mundo social.
O nariz decide o cardápio: olfato e a seletividade alimentar infantil
A seletividade alimentar infantil é um desafio para muitas famílias, e sua raiz pode estar no nariz. A ciência mostra uma correlação direta entre a dificuldade de identificar odores e a neofobia alimentar (medo de comidas novas).
O problema não é apenas não gostar de um cheiro, mas ter uma “biblioteca de odores” limitada, gerando um ciclo vicioso: a criança evita novos alimentos, limitando sua exposição a novos cheiros, o que a impede de construir um repertório olfativo e a torna ainda mais receosa no futuro.
Condições como a parosmia – uma distorção do olfato em que cheiros familiares se tornam desagradáveis, que pode surgir após infecções virais como a COVID-19 – também podem ser a causa. Para uma criança, isso significa que seu prato favorito pode, de um dia para o outro, passar a ter um cheiro insuportável, provando que a recusa é puramente sensorial.
Memória olfativa: o arquivista das emoções da infância
A poderosa ligação entre cheiro e memória olfativa acontece por um “atalho” no cérebro para os centros de emoção (amígdala) e memória (hipocampo). O dado mais revelador é a sua cronologia: estudos mostram que as memórias autobiográficas evocadas por cheiros vêm, desproporcionalmente, da nossa primeira década de vida (<10 anos).
Em contraste, memórias ativadas por palavras ou imagens atingem seu pico na adolescência e início da vida adulta. Isso sugere um “período sensível” em que o olfato é o principal arquivista emocional do cérebro, e levanta uma questão: que impacto uma infância urbana e higienizada, com menor diversidade de estímulos, pode ter na riqueza da nossa memória emocional?
Uma bússola para a vida social
A influência do olfato em crianças vai muito além da família. Por volta dos cinco anos, as crianças começam a usar os cheiros para interpretar o mundo social. Em um experimento, um cheiro agradável no ar fez com que elas tivessem uma tendência a interpretar um rosto neutro como feliz; um cheiro ruim teve o efeito oposto.
Pesquisas emergentes também apontam que uma maior acuidade olfativa está associada a redes sociais maiores e a uma maior capacidade de empatia, funcionando como um canal de informação social sutil ao longo da vida.
Um sentido silencioso: o desafio do diagnóstico no desenvolvimento infantil
A disfunção olfativa em crianças é frequentemente subdiagnosticada por uma razão crucial: as próprias crianças não sabem relatar o problema. Existe um “abismo metacognitivo”. Um estudo marcante com crianças pós-COVID-19 revelou que, embora 92% delas negassem qualquer alteração de olfato, testes objetivos mostraram que apenas 58% tinham, de fato, a função olfativa normal.
É como não saber que se precisa de óculos antes do primeiro exame de vista. A criança não tem referência para saber o que está perdendo, o que torna a atenção de pais e pediatras a sinais indiretos – como mudanças drásticas no apetite – essencial para o desenvolvimento infantil.
Um presente para a vida: atividades de dia das crianças para estimular o olfato
Neste Dia das Crianças, que tal oferecer um presente que dura para sempre na memória e contribui para o desenvolvimento cognitivo infantil? A estimulação sensorial do olfato é uma das melhores e mais significativas atividades para o Dia das Crianças que podemos proporcionar.
- Cozinhem juntos: Deixe a criança ser a “chefe dos cheiros”, explorando temperos, frutas e ervas.
- Passeiem na natureza: Façam uma “caça aos cheiros” em um parque, buscando o aroma de flores, da terra molhada ou de pinheiros.
- Visitem uma feira: Explorem os corredores e conversem sobre os cheiros diferentes das barracas.
Ao valorizarmos o mundo invisível dos cheiros, estamos entregando um presente sensorial poderoso. Estamos ajudando a criança a construir sua “biblioteca de odores”, criando âncoras para memórias afetivas e fortalecendo as vias neurais que lhe darão uma paleta de percepção mais rica para se conectar, aprender e recordar o mundo por toda a vida.
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